Cresci numa cidadezinha de 13 mil habitantes chamada Palmácia e os dados são de hoje, na minha época, há mais de 20 anos, posso dizer com segurança que esse número seria reduzido pelo menos em 40%. Era mesmo uma cidadezinha do interior, todo mundo se conhecia, eu corria solta e livre pelas estradas de pedra e barro, montava um burrico me achando a própria princesa guerreira e aprendi a andar de bicicleta sem medo de ser atropelada, tenho marcas nos joelhos até hoje de pura felicidade e meninice.
Lembro-me, prova de que tenho uma memória de elefante, de uma vez em que fugi com o circo, devia ter meus 4, 5 anos no máximo. Estava brincando na frente de casa – isso era comum -, quando o palhaço falou que quem seguisse o circo não pagaria o ingresso. Eu, que nunca fui boba, fui. Passei o dia lá vendo as apresentações que não deviam ser tão incríveis assim, mas que, para mim, naquele momento da vida, eram a coisa mais maravilhosa que eu já tinha visto na cidade. No fim, quando fui finalmente achada pela minha avó, levei uma surra de cipó de goiabeira pra nunca mais esquecer de avisar quando eu for fugir.
Também me lembro de ter ido a muitos enterros, principalmente aos domingos. A cidade era mesmo pequena e minha bisavó era como uma personalidade da lá, todos a conheciam e ela conhecia a todos. Bom, ela era velha… sendo assim, ela também conhecia muitos velhos e velhos morrem. Então, por alguns bons anos meus domingos eram alternados entre missas e enterros, talvez por isso hoje eu naturalize tanto a morte – embora não possa dizer que não a sinto.
Um dia, foi enterrado o marido da minha tia Sinhá, cunhada da minha bisavó. Os velórios de Palmácia, quando não eram feitos na única igreja da cidade, eram feitos em casa mesmo. O corpo do morto ficava lá enquanto entravam e saiam pessoas o dia inteiro pra dar os pêsames aos familiares. Eu sempre achei hilário esse entra e sai de gente que nem conviveu com o morto chorando pra mostrar condolência, nunca entendi muito bem as pessoas que choram nos enterros, mas observava como quem tenta aprender como se portar nessas situações… eu era criança curiosa. E foi essa curiosidade que me fez, naquele dia, meter o dedo no meio da testa do falecido porque eu queria descobrir o que ia acontecer. O resultado foi um defunto enterrado com uma marca-buraco bem no centro da cara que ninguém sabe de onde surgiu. Souberam anos depois, quando eu resolvi contar a traquinagem.
A minha curiosidade era mesmo estranha quando eu era criança, digo, nunca matei nenhum animal e nunca fiz nenhuma maldade, mas tinha extrema necessidade de entender o que acontecia e os “e se…” me passavam pela cabeça o dia todo. Nessa coloquei algodão no nariz da minha avó enquanto ela dormia – nunca deixem uma criança ir a tantos enterros por semana -, aprendi a limpar galinhas, descobri que não se deve correr entre urtigas, nem passar pimenta nos olhos, aprendi que eu não devo pegar cinquenta reias pra comprar tudo em bala e chiclete na venda em frente a casa e que numa cidade pequena como Palmácia, se você contar um segredo pra sua boneca dentro do seu quarto no dia seguinte todo mundo fica sabendo.
Foi uma infância peculiar, tão distante de tudo o que eu escuto dos meus amigos que brincavam dentro dos condomínios, nas suas casas, jogando videogame ou qualquer coisa que eu não tinha acesso. Foi estranho me mudar pra capital, foi mais estranho ainda quando eu fui pro Rio de Janeiro. Toda criança deveria ter a oportunidade de crescer em liberdade como eu tive, de ter as pernas raladas, calos nos pés de tanto correr, a cabeça na lua porque é possível e permitida a prática do imaginado, bem como planta que se desenvolve no mato e não em jarro. É incrível como ter crescido no interior me fez ser mais do mundo. As coisas que a gente vai entendendo depois que cresce, porque lá atrás era só aventura.
Agora eu me mudei de novo e esse estranhamento de cidade nova ainda me ocorre, ainda que o Porto não seja nem de longe movimentado como o Rio de Janeiro e que aqui eu veja crianças brincando na rua felizes e ralando os joelhos. É engraçado como o corpo se acostuma, como a gente vai se adaptando as peculiaridades do espaço e se tornando um pouco a extensão dele. Aqui, eu ainda ando olhando pro lado e tenho medo de ser atropelada, mesmo que eu saiba que não vai acontecer nada. Sou criança de novo, aquela mocinha curiosa que quer aprender sobre o mundo e sobre as pessoas, mas que em algum lugar – talvez nas grades da cidade grande – infelizmente perdeu um pouco da coragem. Não que fugir com o circo ou botar algodão no nariz da minha avó me sirva de muita coisa pro que eu sou agora, mas aquela vontade, aquela força e potência de ação… ah, se eu soubesse que um dia a gente perde um pouco disso… sumia atrás do palhaço e nunca mais voltava pra casa.
Maria Mangeth
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