O historiador pouco sabe de como se comportavam na cama, homens e mulheres. Tudo indica, porém, que a noite de núpcias fosse uma prova. Era o rude momento da iniciação feminina por um marido que só conhecia a sexualidade venal. Donde a prática da viagem de lua-de-mel, para poupar a família de um momento tão constrangedor. O quarto do casal, espaço onde se entrincheirava a sexualidade conjugal, devia ser um santuário; a cama, o altar onde se celebrava a reprodução. Por cima dela, velava, triste, um crucifixo. Os corpos estavam sempre cobertos e há registros orais de camisolas e calçolas com furos na altura da vagina. A nudez completa só começa a ser praticada no início do século XX; antes estava associada ao sexo no bordel. Tudo era proibido. Fazia-se amor no escuro, sem que o homem se importasse com o prazer da mulher. Usava-se tanto a posição de missionário, quanto à da mulher ajoelhada e de costas, recomendada para a procriação. Médicos aconselhavam aos homens o uso parcimonioso do esperma, de acordo com a idade. A brevidade das relações sexuais deve ter sido uma constante. Ela parecia favorecer as concepções, e qualquer dúvida sobre a matéria era esclarecida pelo livro Felicidade do amor e himeneu, do dr. Mayer, que dava conselhos sobre “a arte de procriar filhos bonitos, sadios e espirituosos e conselhos úteis nas relações sexuais”.
Mulheres se queixando da falta de sexo? Nem pensar... E como gozar? Na Europa, se desenvolvera uma aritmética do coito, os homens contando e anotando em seus diários, o número de vezes em que faziam sexo com suas esposas. Esta contabilidade – que pode ter chegado aqui como mais uma moda emprestada – tinha por objetivo evitar que a mulher se tornasse carente, e também, dentro de certo espírito burguês, contornar os riscos do desperdício de sêmen. Era importante controlar a gestão do esperma. Nada de excessos. O medo do fiasco, era total. Não faltavam teóricos a quantificar a capacidade anual de intercursos entre homens e mulheres. E tudo se misturando à valorização da vida espiritual que fazia do sexo, entre as mulheres, um verdadeiro sacrifício.
“O “amor físico” deveria ser sistematicamente combatido e valorizado, apenas, o “amor amizade”. O primeiro “acharia seu túmulo no gozo do objeto amado” e era garantida a “sua curta duração”. A amizade, mais “plácida e sossegada” teria vida longa e prometia “doçura” na vida conjugal. A valorização extrema da virgindade feminina, a iniciação sexual pelo homem experiente, a responsabilidade imposta pela medicina ao esposo, fazendo dele o responsável pela iniciação sexual da esposa, mas de uma iniciação capaz ao mesmo tempo de evitar excessos, fazia parte do horizonte de ansiedade que os casais tinham que enfrentar. Do lado delas, o risco era de sofrer acusações: de histérica, de estéril, de estar na menopausa, de ninfomaníaca, de lésbica! Não faltavam anátemas para controlar o perigo da mulher não pacificada por uma gravidez.
O culto da pureza que idealizava as mulheres reforçava a distância entre os casais. Não se procurava ter prazer com a mãe dos próprios filhos. Considerava-se que a familiaridade excessiva entre os pares provocava desprezo. A nudez, por exemplo, era evitada a todo custo, mesmo entre casados. Esposas nem podiam sair à rua com cabelos soltos. Um sistema de ritos codificava a vida feminina e dissimulava o corpo da mulher. Corpo que, frente aos homens, devia mostrar-se corsetado, protegido por todo o tipo de nós, botões e laços. O resultado é que as mulheres se tornavam beatas ou pudicas azedas, cumpridoras de seus deveres e os homens, bastiões de um respeitoso egoísmo, abstendo-se de toda e qualquer demonstração em relação às suas esposas. A tradição religiosa acentuava a divisão de papéis. Para a Igreja, o marido tinha necessidades sexuais e a mulher, se submetia ao papel de reprodutora. Ideais, eram casais que se inspirassem em Maria e José, vivendo na maior castidade. Uma vez realizada a concepção, a continência mútua era desejável. É provável que as mulheres não tivessem nenhuma educação sexual, educação que era substituída pela exortação à castidade, à piedade e à auto repressão. As mulheres, tão desejosas de passar de noivas a casadas e mães, submetiam-se a tais restrições.
No final do século, pequenas mudanças! Por força de práticas sociais, certa ideia de casamento que fosse além do rasteiro negócio, começa a circular. Podemos observá-la em pequenos artigos como o publicado no Jornal do Commercio, em 1888. O título: Os dez mandamentos da mulher.
“1º). Amar a vosso marido sobre todas as coisas... 2º). Não lhes jureis falso...3º). Preparai-lhe dias de festa...4º). Amai-o mais do que a vosso pai e mãe...9º. Não desejeis mais do que um próximo e que esse seja teu marido.... Aos homens: “1). Uma boa mulher toma bem nota, quer ser tratada com juízo. Não abuses de seu coração flexível, pois objetos frágeis quebram-se facilmente. 2º). Que as tuas ordens e teus desejos sejam brandos, pois, o marido é senhor e não déspota. 3º). Se alguém te zangar na rua não te vingues em tua mulher, não exijas tudo com a máxima exatidão; tu erras, por que não o fará a mulher? 4). Não namores outras mulheres, ama unicamente tua mulher, eis o teu dever. 5º). Se a mulher te pedir dinheiro por precisar dele, não deves resmungar...9º). Ama sempre a tua mulher, não te deixes apossar do mal. 10º). “Caminha assim com ela de mãos dadas e serão felizes até a eternidade”.
E o domínio da sexualidade feminina? Ah! Este era sempre da “outra”, da “mulher bonita”, da cortesã ou... Da louca, da histérica. Os estudos sobre a doença mental, monopólio dos alienistas e a criação da cadeira de Clínica psiquiátrica nos cursos da faculdade de Medicina, desde 1879, acabaram por consagrar a ética do bom e do mau comportamento sexual. Estes eram tempos em que médicos importantes como Dr. Vicente Maia, examinavam mulheres cujas infidelidades ou amores múltiplos se distanciavam da ordem e da higiene desejada pela ordem burguesa que se instalara nos centros urbanos. Fichas médicas abundam em informações sobre o ciclo menstrual, a vivacidade precoce, a linguagem livre de certas pacientes associando tais “sintomas” a distúrbios psiquiátricos. Distúrbios uterinos podiam estar relacionados com ataques epiléticos e mesmo crimes de morte. Os médicos começavam a delinear o perfil do que chamavam a “mulher histérica”, tendo se tornado moda entre as de elite, “ataques” quando da saída de um enterro ou da chegada de notícia ruim.
A mulher tinha que ser naturalmente frágil, bonita, sedutora, boa mãe, submissa e doce. As que revelassem atributos opostos seriam consideradas seres antinaturais. Partia-se do princípio que, graças à natureza feminina, o instinto materno anulava o instinto sexual e consequentemente, aquela que sentisse desejo ou prazer sexual seria inevitavelmente, anormal. “Aquilo que os homens sentiam”, no entender do Dr. William Acton, defensor da anestesia sexual feminina, só raras vezes atingiria as mulheres, transformando-as em ninfomaníacas. Ou, na opinião do renomado Esquirol que tanto influenciou nossos doutores: “Toda a mulher é feita para sentir, e sentir, é quase histeria”. O destino de tais aberrações? O hospício. Direto!
Entre alienistas brasileiros – explica a historiadora Magali Engel – associava-se diretamente a sexualidade e a afetividade. O médico Dr. Rodrigo José Maurício Júnior, na primeira tese sobre o tema apresentada na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1838, não hesitava em afirmar: “As mulheres nas quais predominar uma superabundância vital, um sistema sanguíneo, ou nervoso muito pronunciado, uma cor escura ou vermelha, olhos vivos e negros, lábios de um vermelho escarlate, boca grande, dentes alvos, abundância de pelos e de cor negra, desenvolvimento das partes sexuais, estão também sujeitas a sofrer desta neurose”. E ele não estava só. Muitos mais pensavam que a histeria era decorrente do fato de que o cérebro feminino podia ser dominado pelo útero. Júlio Ribeiro, em seu romance naturalista A carne, de 1888, põe na boca de um dos protagonistas, Barbosa, a certeza de que fora deixado por sua amante, Lenita, pois esta, possuidora de um cérebro fraco e escravizado pela carne tornara-se histérica. Na versão de outro médico, o Dr. Henrique Roxo, a excessiva voluptuosidade da mulher era facilmente detectável por um sintoma óbvio: “eram péssimas donas de casa”.
Das teses de medicina, ao romance e destes para as realidades nuas e cruas do Hospício Nacional dos Alienados, a verdade era uma só: a sexualidade feminina era terreno perigosíssimo e era de bom tom, não a confundir com sentimentos honestos. Menos ainda, amor. A iniciação a práticas sexuais seguidas do abandono do amante levava à degeneração. Acreditava-se que, uma vez conhecedora de atividades sexuais, as mulheres não podiam deixar de exercê-la, como vemos no romance de Aluísio de Azevedo, Casa de Pensão: viúva, Nini, passa a ter sintomas de histeria. A não satisfação do desejo sexual cobrava um preço alto. A paixão por outros homens que não o marido, ou seja, o adultério, também aparecia aos olhos dos médicos como manifestação histérica. O remédio eram os mesmos há duzentos anos: banho frio, exercícios, passeios a pé. Em casos extremos, recomendava-se, - pelo menos em tratados médicos – a ablação do clitóris ou a cauterização da uretra.
Perseguiam-se as histéricas e ninfomaníacas e também, os masturbadores. Debruçados sobre a sexualidade alheia, examinando-a em detalhes, os médicos, por sua vez, terminam por transformar seus tratados sobre a matéria, no melhor da literatura pornográfica do período.
Por Mary Del Priore Trecho extraído Livro Histórias da Gente Brasileira, editora Leya.
Comments