Por Sabrina Fidalgo
ENTREVISTA : DRA. MARIA AUGUSTA ARRUDA-BULLOCK
Estreando como colunista do LIQUIDIFICADOIDA decidi dedicar esse espaço a muitas e maravilhosas mulheres que vem contribuindo imensamente em todos os setores da sociedade e cujos trabalhos nem sempre chegam aos olhos do público. A partir de agora, a cada quinze dias, vocês verão entrevistas que realizarei com mulheres de todas as cores, etnias, nacionalidades credos, religiões, espalhadas pelos quatro do mundo. Todavia, darei ênfase às mulheres negras, que vem construindo suas narrativas particulares a despeito das opressões e tentativas de apagamentos que sofrem na dinâmica diária. E para estrear minha coluna escolhi uma jovem mulher sensacional que poucos ouviram falar aqui no Brasil, mas que, muito em breve, se tornará um dos nomes mais conhecidos do nosso país : a cientista carioca radicada em Londres, Dra. Maria Augusta Arruda-Bullock. Professora da Universidade de Nottingham, vencedora do prêmio L'Óreal Unesco de Ciência, ex-diretora do Programa Ciência Sem Fronteira no Reino Unido e Doutora em Farmacologia pela UERJ, Guta, como é chamada pelos íntimos, é hoje um dos principais nomes da ciência no Brasil e no mundo. Mãe de uma moça de 18 anos, Maria Luísa, fruto de seu primeiro casamento ainda no Brasil, e atualmente casada com o inglês Andrew Bullock, ela ainda por cima é um exemplo de equilíbrio que consegue conciliar uma excepcional carreira profissional com uma pacata e feliz vida familiar. Eu conheci a Guta junto com sua irmã, Maria Amália Cursino, ainda na infância, quando nossos pais trabalhavam juntos nas varias encenações do Teatro Profissional do Negro, companhia teatral fundada pelos meus pais, Ubirajara e Alzira Fidalgo. Naquela época, idos dos anos 1980, passávamos infinitos fins de semanas brincando sem parar na casa de seus pais. Guta é filha de Katia Maria Cursino de Freitas, Terapeuta Ocupacional, Psicoterapeuta e de Adagoberto Arruda (falecido em 2014), conhecido ator, performer e professor de teatro, ambos ativistas do Movimento Negro Unificado. Sua vitoriosa trajetória é um reflexo de um projeto bem-sucedido de amor e militância na família e nas artes. Com vocês, Maria Augusta Arruda-Bullock!
Sabrina Fidalgo - O que você sonhava em ser quando crescesse?
Dra. Maria Augusta - Ser cientista! Meus pais bem que tentaram me seduzir com as artes, mas o meu negócio sempre foi misturar coisas e ver o que acontecia!
Sabrina Fidalgo - Qual a sua formação? Onde estudou?
Dra. Maria Augusta - A minha formação aos 14 anos, quando ingressei na Escola Técnica Federal de Química para cursar Biotecnologia, e que foi o grande alicerce acadêmico. Em seguida prestei o vestibular e entrei para a UERJ para cursar Ciências Biológicas. No mesmo ano eu passei num concurso para técnica em Biotecnologia da mesma UERJ, ou seja, comecei a faculdade já trabalhando (ajudou ter somente 19 anos!). O meu bacharelado, bem como o meu doutorado (UERJ), foi em Farmacologia. Depois eu me tornei Professora de Farmacologia da UERJ, cargo que acumulei com o de Pesquisadora em Saúde Pública de Farmanguinhos/FIOCRUZ até vir para Nottingham.
Sabrina Fidalgo - Como foi a sua vida acadêmica? Me fale brevemente da sua experiência enquanto mulher negra na academia.
Dra. Maria Augusta - Minha mãe sempre acreditou na educação como o grande legado que ela poderia nos deixar, e infelizmente isso sempre resultou em boas escolas com um numero reduzido (e na maioria das vezes, inexistente) de crianças negras. Isso se repetiu na Universidade e em todas as experiências acadêmicas que tive, mostrando a enorme disparidade histórica na representação negra nestes espaços. O preconceito é sempre presente, e infelizmente aprendemos a lidar com ele. A minha mãe, depois de ser extremamente atuante e ter participado, junto com meu pai e outros grandes nomes, da fundação do Movimento Negro Unificado, decidiu que a nossa forma de militância enquanto família seria estarmos presentes em que não éramos previstas. Creio que isso deu a mim e a minha irmã, Maria Amália Cursino (publicitária e estudiosa das questões étnico-raciais), resiliência para seguir os caminhos que escolhemos.
Depois de formada, a situação continuou muito semelhante, sendo o “token” dentre os meus colegas professores e pesquisadores (que em sua maioria sempre me trataram muito bem). No entanto, graças a introdução do sistema de cotas eu pude observar que a Universidade começou a se tornar um ambiente que mais se assemelhava a nossa sociedade, e participar desta mudança, ao acolher e ensinar os brilhantes alunos que foram capazes de superar as barreiras socioeconômicas e raciais e ingressaram em cursos de elite na Universidade foi uma experiência maravilhosa!
Sabrina Fidalgo - Quando você foi viver em Nottingham? O que te levou ao Reino Unido?
Dra. Maria Augusta - Isso é uma história muito longa! Resumindo, eu vinha colaborando com os Professores Steve Hill e Barrie Kellam, da Universidade de Nottingham desde 2009, e em 2011 houve a possibilidade de passar um sabático de um ano nos laboratórios de Nottingham, por conta do meu cargo na Fiocruz. Isso foi muito facilitado pelo comprometimento do meu marido, Andrew Bullock, em dividir comigo as responsabilidades na criação da minha filha, Maria Luísa Cursino da Silva, fruto do meu primeiro casamento. Ele é um homem fantástico, e fez essa jornada muito mais tranquila.
Durante esse período, começamos a pensar junto com a Fiocruz e a CAPES na criação de um programa de capacitação de pessoal de nível superior (principalmente pós-doutores e alunos de doutorado) em tecnologias de ponta para descoberta de novos fármacos, uma área estratégica e que agora começa a tomar novo fôlego no Brasil, principalmente por conta de instituiçōes como o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), Fiocruz e outros polos de excelência.
Sabrina Fidalgo - Como você conseguiu se tornar professora da Universidade de Nottingham?
Dra. Maria Augusta - Com a criação do Programa Drug Discovery eu assumi o posto de Coordenadora-Geral do Programa no Reino Unido. Com isso também assumi a direção do Ciências sem Fronteiras na Escola de Ciências da Vida da mesma universidade.
Sabrina Fidalgo - Como foi receber o prêmio L'Óreal Unesco de Ciência?
Maria Augusta - Um divisor de águas, uma experiência glamorosa, uma pequena recompensa ao esforço sobre-humano de meus antepassados para que eu tivesse as condições de chegar ali. O prêmio abriu, e continua abrindo muitas portas, é um selo de qualidade aferido a sua pesquisa. No entanto, eu tive muita dificuldade para lidar com a repercussão na época por eu ser preta – eu virei uma história interessante e minha pesquisa de certa forma ficou em segundo plano, e isso me deixou um pouco inibida em dividir essa fase maravilhosa da minha vida com as pessoas.
Levei anos trabalhando isso, e agora eu resgatei essa história e consigo vislumbrar a importância para a nossa causa.
Sabrina Fidalgo - Me explica como é ser uma cientista. O que exatamente uma cientista como você faz?
Dra. Maria Augusta - É uma profissão como outra qualquer, mas 24/7! A gente não para de pensar em Ciência. Nos bons tempos eu ficava na bancada, fazendo experimentos, o que é muito divertido. Mas eu logo comecei a ter alunos de mestrado e doutorado, e boa parte da minha vida foi pensar nos experimentos e discuti-los, ao mesmo tempo que estava escrevendo projetos para financias as pesquisas nos últimos anos, por conta dessa colaboração Brasil-Nottingham, eu comecei a me preocupar mais com o lado gerencial de manter projetos bilaterais de grande porte, o que tem me levado a reavaliar a Ciência que fazemos, o seu papel social, e utilizar abordagens de Diplomacia e Comunicação Cientifica para engajar os diferentes atores desse processo. Até stand-up eu faço para aprimorar a minha comunicação, parece que o palco sempre esteve adormecido dentro de mim – Freud e a Genética explicam!
Sabrina Fidalgo - Como foi coordenar o Programa Ciência Sem Fronteira? Como surgiu essa oportunidade? A maioria dos bolsistas brasileiros do CSF eram brancos e você é uma mulher negra. Como foi essa experiência?
Dra. Maria Augusta - Foi uma experiência enriquecedora, e ainda que a maioria dos alunos fossem branca (exatamente como é nas universidades do Brasil) pude ter contato com alunos de todo o Brasil, com realidades muito distintas que cruzaram o Atlântico para aprender e fazer Ciência. Tratei-os como trato qualquer aluno que tive ao longo destes muitos anos, a única diferença é que eu só falava com eles em inglês (salvo em momentos especiais!).
Sabrina Fidalgo - Quais são os seus projetos atuais e futuros?
Dra. Maria Augusta - Sinto que minha missão hoje é trabalhar para aumentar a colaboração Brasil-Reino Unido no campo de Descoberta de Novas Drogas e levar esta experiência para outros países em desenvolvimento, sobretudo com a África Lusófona, via colaborações que estamos começando a tecer (watch this space!). Vejo ainda a necessidade de militar mais intensamente no campo da Diplomacia e Comunicação Científicas.
Sabrina Fidalgo - Como é ser uma mulher negra e brasileira no Reino Unido?
Dra. Maria Augusta - Eu costumo dizer que eu, como todas as mulheres negras que transcenderam a opressão histórica que sofremos, sou um acidente histórico. Eles não nos previam transitando por onde transitamos. Minha contribuição pequena a nossa luta é estar, é ser, é fazer. Angela Davis sempre esteve certa. Ser imigrante tem os seus atropelos, e estamos num mundo em que cada avanço é recebido com uma dose enorme de xenofobia, misoginia e racismo. Isso está acontecendo aqui, como no Brasil, como nos EUA porque eles sabem que perderam a guerra. Vamos seguindo, batendo esse bolão aqui, lá e acolá.
Sabrina Fidalgo - Quantos anos tem sua filha? Ela nasceu em Londres? Você pensa em viver no Brasil algum dia?
Dra. Maria Augusta - Minha filha, Maria Luísa, tem 18 anos, e veio comigo quando tinha 11 anos – ela também é carioca da gema! Ela está indo para Universidade aqui em setembro e vai cursar Economia. Ela tem grande interesse em Desenvolvimento e Justiça, e eu acho que a nossa vivência e o contato que ela teve ao longo da sua vida aqui no Reino Unido, com pessoas de diferentes etnias, nacionalidades, refugiados, etc, a sensibilizaram para essas áreas, indispensáveis para pensarmos o futuro global.
Sabrina Fidalgo - Como foi o encontro com a Djamila Ribeiro?
Dra. Maria Augusta - MÁGICO! A Maria Luísa (Malu) estava participando do King’s Transnational Law Summit, no King’s College. Esse evento, de 4 dias contou com a participação dos maiores nomes mundiais em Justiça e Direitos Humanos, como a nossa Djamila. Eu infelizmente não pude participar do evento por conta de outros compromissos, mas eu fui para Londres para acompanhar a Malu. A Malu me ligou e disse “Mamãe, a Djamila e eu estamos indo encontrar você”. Imagina a emoção?! Nos encontramos num pub, e parecia um encontro de amigas de infância. Repetirei as minhas primeiras palavras ao cumprimentá-la: “Obrigada por existir. Obrigada pelas que já partiram, pelas que estão por vir, obrigada por todas nós”. Teve uma hora, olhando para ela e minha filha conversando nesse apartamento do século 19, construído com o sangue dos nossos antepassados, que eu tive que evocar Ava DuVernay: “We are our ancestors wildest dreams!”
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